Uzbequistão 6 – Samarqanda, uma cidade das mil e uma noites

A foto que fiz de uma pintura que estava no museu (por isso o reflexo das luzes no vidro da gravura) mostra a importância que Samarqanda deve ter tido no passado. A representação de sua feira (bazar em árabe) indica que ali se vendia de tudo, com destaque para os tapetes, e havia muita gente. Não há como uma atração ancestral não se exercer sobre nós, ao contemplarmos essa imagem.

Todos nós já ouvimos falar do livro “As mil e uma noites”. Alguns escutaram histórias contadas pelos mais velhos a partir dele, outros tiveram a chance de ler alguns contos em uma das muitas traduções que esta obra tem.

Eu ganhei, quando tinha uns sete anos, uma versão colorida para crianças, que foi presente de meu avô materno. Foi para mim um presente muito especial, inclusive porque ele sempre preferia trazer presentes para os netos homens, de modo que ganhar alguma coisa já era motivo de alegria.

Não me lembro bem das histórias, mas sim que elas eram deliciosamente cheias de fantasias e que aquele livro merecia estar na estante do lado do Atlas que me foi presenteado pela Tia Irma, porque ambos tinham capa dura e isso dava a uma publicação um status muito diferente das demais. Hoje, com a estante cheia de livros, pergunto-me o quanto esses primeiros tiveram influência no gosto pela leitura e pela Geografia, mas isso é tema para outra conversa…

Abro o site da Amazon e encontro à venda esta obra, com destaque para o fato de que é uma pequena coleção de capa dura, como o meu adorado exemplar do passado.

Fico curiosa, tentando me lembrar de alguma história do antigo livro e me deparo, então, com o resumo apresentado pela maior plataforma de venda de livros do mundo atual:

Decidido a matar todas as mulheres solteiras do reino, após ter descoberto a traição da sua mulher, o sultão Shahriar casa-se a cada noite com uma jovem diferente que será morta ao amanhecer. Mas a filha do grão-vizir, a impetuosa Sherazade, decide enfrentar o desafio e interromper esse ciclo vingativo, oferecendo-se para a noite seguinte. Noite que se multiplica, assim como as histórias de Sherazade, adiando sua morte indefinidamente. Até que passadas mil e uma noites, o sultão, apaixonado pela envolvente narradora, suspende a ordem cruel. Obra-prima da literatura oriental, As mil e uma noites ganhou destaque também no Ocidente a partir da versão do orientalista francês Antoine Galland, no qual esta edição é baseada. Galland selecionou as lendas mais curiosas e de enredo mais palpitante, traduzindo-as para o francês. O livro alcançou êxito extraordinário, sendo a partir daí traduzido para vários idiomas. Com apresentação de Malba Tahan, admirador da cultura árabe e um de seus principais divulgadores no Brasil, esta edição reúne as histórias exóticas e maravilhosas que vem povoando o imaginário de muitas gerações de leitores.

Levo um susto, porque nada deste enredo ficou na minha memória, reforçando a informação de que são tantas versões e traduções que sei lá o que efetivamente estava apresentado na minha versão para crianças. Ademais, a cada idade temos filtros que selecionam aspectos diferentes de uma dada narrativa e o pouco que me lembro remete mais a viagens fantásticas do que às noites de Sherazade.

Não faz mal, porque agora que estive em Samarqanda vou ler novamente a obra, tomando cuidado para ficar com a que é considerada a melhor tradução, a de um professor da USP, Mamede Mustafá Jarouche, por ser a única efetuada diretamente do árabe para o português (fonte: https://lugaresdememoria.com.br/samarcanda-a-cidade-de-mil-e-uma-historias/)

Historicamente, há uma associação entre esta cidade, Samarqanda, nascida sete séculos antes de Cristo, e o famoso livro, que, de fato, nem foi ambientado diretamente nela. Com certeza, são os minaretes, as mesquitas, as madraças e os mausoléus todos cobertos com mosaicos coloridos, numa profusão de tons mais sensíveis e vivos, do que as que vimos em Tashkent, que animam o imaginário coletivo a pensar que este é um lugar especial. Pelo menos assim estou pensando eu agora.

Há quem considere que por ter sido citada várias vezes no livro, esse clássico da literatura árabe está mais associado a Samarqanda do que a outras cidades da Rota da Seda. Escreveu Sylvia Leite no site acima citado que a segunda maior cidade uzbeque e a mais visitada pelos turistas integra o mesmo universo cultural, em que é narrada a história do sultão Shahriar e de sua Shahrazade.

Encontro aqui e ali mais informações e fico sabendo que Michel Foulcault considera que os saraus de Shahrazade destinados a afastar, noite após noite, a decisão do sultão de matá-la podem ser compreendidos como boa representação do esforço humano de não deixar a morte atrapalhar a vida.

Procuro mais um pouco no Google, para entender a associação entre a famosa obra e a cidade que não lhe serviu de palco, e encontro a seguinte informação:

Pela abordagem histórica que faz a um Oriente que julgamos já não existir, a obra Samarcanda, de Amin Maaluf, faz renascer no leitor todo o romantismo associado ao nome mágico desta cidade: as Mil e Uma Noites e as caravanas de camelos de passagem pela Rota da Seda, os bairros poeirentos onde se acotovelavam multidões de turbante, os palácios faustosos de emires cruéis e os seus haréns proibidos, os jardins paradisíacos, palcos de noitadas de vinho e poesia.

[…] o ambiente arcaico, as personagens de outros tempos estão lá. Há velhos de barbicha pontiaguda, casacão comprido e faca na faixa enrolada da cinta, bamboleando-se nas botas negras de cano alto dos cavaleiros. As mulheres, muçulmanas de lenços coloridos, usam vestidos de um estampado ziguezagueante sobre as calças tufadas e vendem legumes e fruta nos mercados, algumas ainda com as sobrancelhas unidas por um traço negro.

Fonte: https://comedoresdepaisagem.com/mil-e-uma-noites-samarcanda-usbequistao/

Fico buscando na Samarqanda atual os vestígios de As mil e uma noites do passado e, memo sabendo que as mudanças são muitas e inexoráveis, encontro aqui e ali, manifestações de um jeito alegre de ser e, simultaneamente, de maior apego às tradições nesta cidade, como se o passado de glórias e luxo, valesse mais que o presente.

Há mais mulheres vestidas com túnicas longas, coloridas e com as cabeças cobertas com lenços, comparativamente ao que observei em Tashkent, capital do Uzbequistão. O gosto pelos brilhos parece ser maior por aqui, uma vez que suas roupas são feitas de sedas ou veludos sedosos que brilham à luz do dia. Aliás elas se vestem com tecidos invernais mesmo que as temperaturas tenham chegado, hoje, aos 36 graus centígrados.

Muitas, entre as mais velhas, têm até os dentes cobertos de ouro, mas não havia como tentar fotografar uma delas: seria muito invasivo. Assim, cometo um pequeno delito e surrupio um registro disponível no site iStock.

Também reparo que há gente pelas ruas e não são somente turistas. É no Registan, a praça monumental de Samarqanda, que desfilam as mulheres uzbeques mais ou menos fiéis à cultura muçulmana. Ali estávamos no final da manhã e uma noiva circulava com suas amigas antes da cerimônia de seu casamento. O vestido branco, segundo nosso guia Barkhram é herança da influência russa, a cabeça coberta é respeito à tradição mulçumana e sobre o celular nas mãos dela não preciso explicar muito.

Mais tarde, esperando o show de luzes que ocorre todos os dias às 20h30, observei muitas jovens, moças e rapazes, vestidos à modo ocidental, sempre com camisetas e bolsas ostentando as peças mais chamativas das grandes marcas globais autênticas ou ‘legítimas’ cópias do original (Diesel, Pierre Cardin, Yves Saint Laurent), afinal  o Uzbequistão está cada vez mais invadido pelos produtos industriais da vizinha China, ainda que nosso guia tenha estabelecido uma hierarquia informando que as melhores confecções são as que vêm da Turquia, ficando as chinesas em segundo plano.

Havia, também, as outras sempre acompanhadas das mães, quando solteiras, e dos maridos e filhos, quando casadas, ainda trajadas à moda ‘antiga’.

Encantou-me uma delas, pela beleza do rosto que talvez tivesse passado despercebido se o corpo estivesse mais à mostra (não vai você leitor interpretar que estou defendendo que andem cobertas). Ela tinha um jeito infantil, ao brincar com o filho, e estava extremamente alegre e risonha, o que afasta um pouco da ideia de que a cultura muçulmana seria mais fechada e triste que outras. Queria ter feito um registro fotográfico melhor do seu rosto, mas não foi possível… de todo modo, cometi outro pequeno delito ao trazê-la para esse blog sem pedir-lhe autorização.

Ali estava ela, como outras uzbeques, no Registan, coração de Samarqanda, que na sua língua tanto pode ser escrito com alfabeto cirílico como latino (Регистон, Registon).

Se pensamos que essa praça foi o centro principal da vida urbana no império Timúrico e que permanece até hoje com tanta vida, não apenas para os turistas como para os moradores, acho que se trata de um exemplo de espaço público muito vivo.

A palavra, de origem persa, significa lugar arenoso ou desértico (Rēgistan, ریگستان), e é representativo do papel de Samarqanda como um oásis na Rota da Seda. No passado, ali ocorriam tanto proclamações reais, precedidas de avisos que eram feitos por meio de explosões em canos de cobre, como era um local de execuções públicas daqueles condenados à morte.

Não é acaso que essa praça seja o coração da cidade, pois além de ter muito espaço livre para se estar, nela estão dispostas três enormes edificações voltadas à mesma finalidade: ensinar o Corão, a bíblia dos muçulmanos. Hoje essas madraças não funcionam mais como tal e são essencialmente o lugar dos turistas, mas ter visto que os moradores também a escolhem para passear ou fazer seus registros fotográficos mostram que a espetacularização da vida pode ocorrer de modos diversos, cotidianamente, como para os moradores, ou excepcionalmente como para os turistas; estandartizados como os organizados pelas agências ou não, quase peregrinos como alguns viajantes escolhem conhecer os lugares; pagãos ou religiosos, cristãos, judeus, hindus ou mulçumanos num mesmo ambiente.

A grande praça e suas madraças são herança dos tempos de riqueza de Samarqanda, decorrentes da passagem de caravanas da Rota da Seda e da riqueza e poder de Timur. A primeira foi construída entre 1417 e 1420 (à esquerda na foto superior e em close na inferior) e se chama Ulugh Beg Madrasah, a segunda denominada Sher-Dor Madrasah foi edificada entre 1619 e 1636 (a da direita na foto de conjunto) e a última Tilya-Kori, entre 1646 e 1660 (está na parte central também da foto anterior).

Os pátios internos são muito agradáveis porque oferecem visão mais detalhada das cerâmicas que decoram as paredes e, ademais, propiciam que imaginemos como terão sido os espaços de estudo há quatro ou cinco séculos atrás.

As portas das celas onde moravam os estudantes são, em alguns casos, ainda originais e desenhadas, com entalhes que valorizam a simetria e as representações da natureza como folhas de plantas. Aí estão os elementos que são tão caros à decoração árabe antiga que não admitia a representação de humanos.

Gostei das três madraças, mas a que mais me impressionou foi a terceira, Tilya-Kori, com sua linda cúpula em verde (ou seria turquesa?) e sua sala de orações que é dourada (a parte superior inclusive é totalmente em ouro). Pelo número de celas que apareçam na fachada central deduzo que teve muitos estudantes do Corão que por ali passaram.

Na noite seguinte, voltamos ao Registan para apreciar o show de luzes (foi quando fotografei a linda uzbeque sobre a qual fiz comentários). A temperatura mais amena do que durante o dia, mas sem vento, o céu extremamente límpido e o ambiente com tantas vozes e línguas que parecia uma Babel tornaram o espetáculo bem agradável, ainda que um pouco longo para o meu gosto.

As músicas tocadas são as mais diversas, havendo tanto orientais como ocidentais. A mudança das cores e o ritmo da reflexão delas nas paredes das madraças buscam orientar o show, que era fotografado e filmado por algumas centenas de pessoas.

Foi uma noite ótima!

A mesquita de Bibi-Khanum, nome da primeira esposa de Timur, é outro monumento representativo do apogeu de Samarqanda. Foi concebida para ser uma das maiores mesquitas do mundo, grande o suficiente para 14 mil pessoas orarem simultaneamente. Sua denominação é homenagem a Sarai Mulque Canun, conhecida como Bibi (‘mãe’ em persa) Khanun (‘senhora’ também em persa), ou seja, Senhora Mãe.

Seu arco de entrada tem 35 metros e nesta mesquita estava o enorme Alcorão que havíamos visto antes em Tashkent, cujo tamanho se justifica, porque deveria ser lido do alto do minarete.

Há muitos folclores sobre essa enorme mesquita. Um deles é de que Timur, por estar sempre em expedições de conquista, confiara à sua esposa acompanhar os trabalhos do arquiteto responsável pelo projeto. Ele estava enamorado de Bibi-Khanun e a cada pedido seu de pequenas modificações no projeto exigia um beijo e ela aceitava fazer o singelo pagamento…. Beijo após beijo o projeto foi tão alterado que não suportou o passar dos anos, trincou e mais tarde desmoronou parcialmente. Em outros sites, li que o desmoronamento se deveu ao terremoto de 1897. Verdade ou mentira, as relações entre o arquiteto e Bibi, como ela é chamada aqui no Uzbequistão, são a explicação dada para o fato de que Timur mandou executar o arquiteto que conseguiu se escafeder, antes que a execução ocorresse.

O Mausoléu Guri Emir, onde está a tumba de Timur, séculos XIV e XV, é outro ícone da arquitetura que faz do Uzbequistão, hoje, um país muito visitado pelos turistas. Fotografei a maquete do complexo, que oferece uma visão melhor do conjunto. Neste complexo, viam-se não apenas os turistas estrangeiros, mas também muitos uzbeques e mulçumanos de outros países, mostrando que há também um turismo associado tanto ao poder político do passado como à religião, afinal, não estamos falando de reinados laicos. Assim, ao lado da presença quase relaxada dos turistas em seus trajes quase caricatos, havia gente que realizava a visita em poses de quase adoração.

Muitas coisas mais pude conhecer em Samarqanda, como o Observatório Ubugbek, do século XV, que foi construído por ordem da esposa de Timur, para seu neto que tinha interesse pelos astros e acabou se tornando um estudioso do tema. Neste Observatório, muitas pesquisas foram feitas e se chegou à conclusão sobre a curvatura da terra paralelamente a este feito na Europa. [E há gente no Brasil que recentemente começou a acreditar que a Terra é plana, por desconhecimento total das evidências científicas ou por oportunismo político].

Visitamos também o Complexo Arquitetônico Shakhi Sinda, construído entre os séculos IX a XV, mas vamos concluindo por aqui esse capítulo do meu diário de viagem ao Uzbequistão, com uma foto feita na madraça Tilya-Kori, o lugar que mais gostei em Samarqanda. Infelizmente não sou boa em selfies e não consegui posicionar o smartphone para ter como fundo os lindos dourados da decoração.

Carminha Beltrão

Abril de 2023

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